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Angels in America

Adaptações são sempre um tema complexo de se discutir, as opiniões sempre divergem, afinal é normal que uns se apeguem mais à uma linguagem do que à outras. Contudo, neste quesito há uma aula a ser assistida: Angels in America.

Já tinha ouvido falar dessa minissérie e tinha muita curiosidade de ver por conta dos nomes envolvidos neste projeto: Meryl Streep, Al Pacino, Emma Thompson e Mary-Louise Parker e vários outros dirigidos por Mike Nichols à partir da adaptação de uma peça. Os melhores trabalhos de Nichols, na minha opinião, são adaptados de peças (Closer e Quem tem medo de Virginia Woolf?).


O Enredo


Em 1985, na era Regan, os EUA estão mais consolidados do que nunca enquanto maior potência diante do enfraquecimento da União Soviética e é quase palpável o sentimento nacional de afirmação, mas que, nocivamente, vem junto com uma repressão muito grande fruto do conservadorismo republicano dominante. Neste contexto, o autor da peça, Tony Kushner, escolheu três esterioripos muito representativos para contar a história: Judeus, Negros e Homossexuais (Crença, Raça e Orientação Sexual), temperando a mistura (com perdão desta ironia infame), é colocado no caldo a AIDS, que nos anos 80 era O grande fantasma sobre a necessidade, e a possibilidade, de ser livre na América. Curiosidade é que dos escolhidos, o próprio Kushner representa dois, Judeu e Homossexual.



Atores

Mike Nichols tem fama de ser querido dos atores por conseguir extrair deles o melhor que sequer eles conheciam, agora imagine fazer isso com Meryl Streep...

Durante as 6 horas de minissérie é feita uma "brincadeira" onde alguns atores interpretam mais de um personagem, por exemplo Meryl chega a fazer um rabino, uma mãe mórmon, o fantasma de uma Judia condenada à morte e um anjo; Emma Thompson faz um mendigo, um anjo e uma enfermeira; e assim acontece com alguns outros. Isso pode ser lido de duas formas: Nichols brinca com o fato de ser uma adaptação teatral e reutiliza atores, coisa comum em teatro de baixo orçamento, ou, fazendo uma leitura mais profunda, podemos enchergar um propósito na repetição desses atores especificamente em dados papeis, como Emma ser a enfermeira de um paciente com AIDS e nos delírios deste também ser um anjo; Ou Justin Kirk interpretar o cara estranho que determinado personagem transa no meio Central Park após abandonar o namorado, interpretado pelo próprio Kirk.

Os seis personagens centrais e até as pequenas aparições são interpretados por GRANDES ATORES como James Cromwell em apenas duas cenas curtas e Michael Gambom como um fantasma/alucinação.



O Texto

Por se tratar de teatro, era de se esperar uma verborragia excessiva e muita eloquência nos diálogos. Mas ainda assim é surpreendente a qualidade do que foi escrito para esta minissérie.

Na verdade o roteiro não conta uma história muito grande, é simples resumir a vida de todos estes personagens, porém os diálogos são tão intensos e bem elaborados que ficamos grudados por 6 horas prestando atenção em algo que é tirado de dentro, de um lugar muito difícil de cutucar. Do lugar onde estes personagens escondem segredos que os envergonha e, pelo menos pra mim, é sempre muito complicado lidar com a vergonha alheia.

São tantos os momentos delicados que fica difícil escolher do que falar. Mas o que mais fica na minha cabeça é um texto de Mary-Louise Parker que nos surpreende com um otimismo quase infantil ao descrever uma "rede" de almas que entrelaçadas taparam o buraco da camada de ozônio e completa "Nada está perdido para sempre. Neste mundo, há uma espécie de progresso doloroso. Ansiando pelo que deixamos para trás e sonhando com o que está por vir."

Há também o texto que encerra a série, já nos anos 90, após a queda do muro de berlim. Depois de uma longa cena discutindo a situação do mundo naquele instante, um dos personagens levanta-se e se dirigindo à nós fala sobre a AIDS: "Essa doença vai levar muitos de nós, mas não todos. E os mortos serão celebrados, continuarão a lutar ao lado dos vivos e nós não iremos embora. Já não teremos mortes secretas. O mundo gira para frente e nós seremos cidadãos. A hora chegou e vocês são todos fabulosos..."

E, ainda por cima, pra que o melodrama não seja tão óbvio em palavras tão pesadas, o texto e os atores conferem ao material um bom humor quase pastelão, como quando o anjo passa um bom tempo sendo puxado pela perna e fala que distendeu um músculo da coxa...


Depois de imergir nestas muitas vidas doloridas por um bom tempo, vemos que eles mudaram, que seja qual for o motivo, houve um impacto, religioso, proveniente de uma doença ou do simples contato humano. O espanto dá lugar à um sentimento de conforto e otimismo. E se, mesmo depois disso tudo, você não conseguir parar pra pensar no seu papel nas mudanças do mundo ou até mesmo no seu papel em fazer o mundo um lugar com mais aceitação e compreensão... eu só posso lamentar. Eu sei o meu!


2 Comments:

Rafael Pinheiro said...

essa série é divina. vi quando passou há muito tempo na HBO. bem vindo de volta ao mundo de blogs. não saia.
beijso.

Marlon said...

Ótimo texto!
E melhor ainda é a minissérie!!

Meryl Streep me surpreendeu!
Sequer imaginei que o Rabino era ela, até ver nos créditos finais...

Parabéns pelo blog.

Abraços